O oriente ainda é vermelho?

The Morning Star, o porta-voz político do Partido Comunista da Grã-Bretanha, está a elogiar e a promover dois novos livros que analisam a China: China’s Great Road de John Ross, e The East is Still Red de Carlos Martinez. Como se pode depreender dos títulos, ambos os livros apresentam a economia chinesa moderna e o Partido Comunista como genuinamente marxistas, o que, aos seus olhos, obriga todos os comunistas a apoiá-los ativamente. Ambos os livros defendem que a China está a abrir caminho para o socialismo e, em última análise, para o comunismo.

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Se isso fosse verdade, então o futuro do socialismo estaria, de facto, em muito boas mãos: para lá da profunda crise do capitalismo, a segunda maior economia do mundo e potência em ascensão estaria a liderar a luta pelo seu derrube.

Neste cenário, poderíamos esperar receber, a qualquer momento, conselhos camaradas inestimáveis e uma imensa ajuda material na nossa luta contra as nossas próprias classes dominantes, pois seria do interesse da China “comunista” reforçar e apressar a nossa luta no Ocidente contra a classe capitalista. E, no entanto, esta preciosa ajuda prima pela sua ausência…

E, no entanto, a questão de saber se a economia chinesa é ou não socialista e dirigida por verdadeiros comunistas é uma questão muito importante que todos os comunistas devem compreender.

Ambos os livros apresentam essencialmente o mesmo argumento, ou seja: a economia chinesa não só cresceu a um ritmo historicamente sem precedentes, como, ao fazê-lo, contribuiu mais para tirar as pessoas da pobreza do que qualquer outra economia da história. Para os autores, este facto mostra que há algo de qualitativamente diferente na economia chinesa em relação às economias ocidentais. Essa diferença reside no facto de o Estado chinês desempenhar o papel principal na economia, planeando-a como um todo e mobilizando os poderes do mercado para atingir determinados objetivos de desenvolvimento. Esta situação contrasta com as economias ocidentais, capitalistas, em que o Estado serve apenas para ajudar o mercado, que é inerentemente anárquico e cego.

Ambos os autores, mas especialmente John Ross, afirmam que a política chinesa pós-1978 de abertura ao mercado não só é compatível com uma política comunista, como até é, de facto, exatamente o que Marx pretendia, pelo menos para o período inicial após uma revolução socialista bem-sucedida.

Ross cita Marx na sua famosa Crítica do Programa de Gotha, na qual Marx argumenta que, no período imediatamente a seguir à tomada do poder pelos trabalhadores, as normas burguesas de distribuição continuariam a prevalecer, ou seja, os trabalhadores receberiam um salário, tal como no capitalismo, e aqueles que trabalhassem mais ou com mais competência receberiam mais, como incentivo para aumentar a produção até ao ponto em que a base para o comunismo fosse alcançada.

Por outras palavras, os mecanismos de mercado para medir, incentivar e recompensar o bom trabalho só podem ser abolidos após um período de transição. Isto trará consigo um certo grau de desigualdade, uma vez que aqueles que trabalham mais ou melhor serão mais bem pagos.

Depois de citar Marx a este respeito, Ross conclui que “estas passagens de Marx tornam imediatamente claro (!) que Deng Xiaoping formulou a reforma e a abertura em termos estritamente marxistas” (Ross, 2021, p. 79). Este magro fragmento de teoria de Marx, que apenas mostra que o dinheiro, os salários e algum grau de desigualdade existiriam durante algum tempo após uma revolução socialista, é o gancho em que assenta toda a afirmação de Ross de que a política económica da China é totalmente marxista.

Se Marx acreditava verdadeiramente que a privatização da maior parte da economia (como aconteceu na China) representa uma transição para o comunismo, então é difícil perceber por que razão Marx não concluiria que quase todas as economias modernas são socialistas e estão a caminho de construir com êxito o comunismo sem necessidade de uma revolução. De facto, é difícil ver como é que a China, tal como é retratada em termos brilhantes em ambos os livros, é diferente de qualquer outra economia capitalista bem-sucedida.

Há uma falta aguda de análise económica qualitativa e dialética, especialmente no livro de Ross. Ele sustenta a sua ligação entre a China e a Crítica do Programa de Gotha com uma única “prova”, que se resume a isto: a economia chinesa cresceu muito rapidamente. Salienta que a China “alcançou a maior melhoria de vida, de longe, para a maior proporção da humanidade, de qualquer país na história humana”. (Ross, p. vii). Uma parte desmesurada das 230 páginas do seu livro é ocupada com diferentes formas de utilizar números para dizer a mesma coisa: o crescimento económico da China nos últimos 40 anos é sem precedentes.

Mas esta abordagem é extremamente superficial. A velocidade de crescimento da China, por si só, não diz nada sobre a natureza da economia, ou seja, sobre as relações sociais, o modo de produção, que produz esses grandes números.

Este facto é evidente, porque a principal razão pela qual o crescimento económico da China ter conseguido “a maior melhoria de vida da maior parte da humanidade de todos os países da história país na história da humanidade” é o facto de a China ser o país mais populoso do mundo.

É lógico que, se o país com o maior número de habitantes experimentasse o tipo de crescimento que muitos outros países mais pequenos experimentaram, então aumentaria o nível de vida de mais pessoas do que todos os outros países. A verdadeira questão é: o crescimento económico da China ocorreu porque a sua economia é qualitativamente diferente? Será que tem um modo de produção diferente?

Ironicamente, o próprio Ross fornece os factos que sugerem fortemente que não há nada fundamentalmente diferente do crescimento da China em relação ao de muitos outros países capitalistas. Ele mostra que a China cresceu mais depressa não só em termos absolutos, mas também relativamente, ou seja, a sua taxa de crescimento tem sido mais elevada do que a de qualquer outro país. “Entre 1978 e 2017 a economia chinesa expandiu-se a uma taxa de crescimento média anual de 9,5% [sic]”. (Ross, p56) De seguida, compara este valor com o de outros países para mostrar que o crescimento da China os excede a todos, enumerando Taiwan com 8,8%, a Coreia do Sul com 8,3%, e o Japão com 6,7% ao ano.

O leitor notará que, embora a taxa de crescimento da China seja mais elevada do que a dos outros países, não é fundamentalmente diferente. Se a taxa de crescimento mais elevada da China do que a de Taiwan é o que prova que é socialista, será Taiwan “mais socialista” do que a Coreia do Sul, e a Coreia do Sul “mais socialista” do que o Japão? Porque é que a melhoria gradual da China é prova de uma diferença qualitativa, mas os outros não?

De facto, muitas destas economias da Ásia Oriental partilham semelhanças. Todas chegaram tarde ao cenário do desenvolvimento capitalista e puderam importar a totalidade das técnicas e infraestruturas mais recentes. Todas tinham salários baixos, o que atraiu o investimento estrangeiro dos países capitalistas avançados, onde os salários eram mais elevados e a taxa de lucro mais baixa. E a China não foi a única a registar uma forte ajuda estatal ao desenvolvimento do capital privado: o Estado interveio fortemente no Japão, em Taiwan e na Coreia do Sul para ajudar a classe capitalista. Ninguém poderá argumentar que este facto as tornou economias “socialistas”. A China tinha a vantagem adicional de se ter desenvolvido mais tarde e de ter acesso a vastos recursos humanos e naturais.

O próprio Ross aponta para o primeiro destes fatores ao explicar a verdadeira razão desta tabela classificativa:

Cada economia líder num período de desenvolvimento económico teve uma proporção de investimento fixo no PIB mais elevada do que a anterior”, o que “produziu taxas de crescimento sucessivamente mais rápidas… O elevado nível de investimento fixo da China é, portanto, apenas o culminar lógico de um padrão secular de aumento da proporção de investimento fixo no PIB – cada um associado a taxas de crescimento mais rápidas”. (pp. 110-111)

Aí está: O crescimento da China não é o resultado de uma economia planificada que funciona de forma fundamentalmente diferente de uma economia capitalista, é apenas o produto de um desenvolvimento tardio (combinado com outros fatores). Tal como o Japão e a Coreia do Sul, a China foi capaz de implementar as tecnologias mais recentes em grande escala, saltando assim muitas gerações de melhorias incrementais e, por conseguinte, registando uma taxa de crescimento mais elevada do que os países que fizeram as melhorias incrementais anteriormente.

No livro de Ross, há uma grande quantidade de análises sobre o crescimento económico da China, mas nenhuma delas sugere que se trata de uma economia planificada. Ele gasta uma grande quantidade de palavras para mostrar ao leitor que o crescimento económico da China está de acordo com a teoria marxista, porque aumentou a sua composição orgânica de capital em relação ao capital variável, ou seja, a quantidade de tecnologia aproveitada pela sua classe trabalhadora cresceu.

Mas isto é o que Marx descreveu para as economias capitalistas, pelo que isto apenas sugere que a China experimentou as mesmas leis que definem o crescimento económico capitalista. De seguida, o autor formula esta afirmação para fazer parecer que isto torna o Estado chinês marxista, dizendo que a China está “em linha com Marx”. Dado que as teorias económicas de Marx explicam corretamente o desenvolvimento capitalista, poder-se-ia igualmente dizer que os EUA estão “de acordo com Marx”. Tudo o que isto prova é que a China se desenvolveu, um facto que ninguém discorda.

Mais uma vez, Ross praticamente admite que não há nada de comunista em tudo isto, quando, surpreendentemente, diz que “também é possível explicar a política económica da China em termos de economia ‘keynesiana’ ocidental” (p. 4), e que “se chegou agora a uma estrutura económica ‘chinesa’ – embora abordando-a através de um quadro keynesiano e não marxista… A economia chinesa não está a ser regulada por meios administrativos, mas sim por um controlo macroeconómico geral, incluindo centralmente o nível de investimento – tal como Keynes defendia” (p139, destaque nosso).

Ele tem toda a razão quando diz que a política económica da China está de acordo com Keynes, mas certamente não está de acordo com Marx. Ross está a tentar diluir e a adulterar Marx para um público académico filisteu que não se preocupa com a precisão teórica, mas sim com a respeitabilidade. Escolhe partes de Marx e de Keynes numa tentativa grosseira de os apresentar como mais ou menos iguais, como se Marx não passasse de um pregador do desenvolvimento económico e da gestão através da intervenção do Estado no mercado. Marx e Lenine ficariam horrorizados com esta mistura de bandeiras, com este desrespeito pela exatidão científica e com a confusão desleixada entre Marx e o economista burguês Keynes.

Não contente em transformar Marx num keynesiano, esforça-se também por esbater as diferenças entre Marx e Smith, dizendo-nos que “em vez de ‘Marx vs Adam Smith’ é muito mais correto falar de ‘Marx e Adam Smith’“. (p92). Toda a gente sabe que Marx estudou e aprendeu com Smith (e especialmente com Ricardo), mas também negou as suas ideias quando introduziu os conceitos de classe, exploração de classe e da mais-valia e, portanto, também a necessidade de crises capitalistas.

A NEP

Ambos os autores consideram que as políticas económicas chinesas pós-1978 estão em consonância com a Nova Política Económica (NEP) aplicada pelo jovem Estado soviético sob a égide de Lenine e Trotsky a partir de 1921. A NEP permitiu que os camponeses vendessem livremente os seus excedentes de cereais no mercado e que os comerciantes obtivessem lucros. Ross e Martinez apresentam isto como a política marxista correta em geral, supostamente em conformidade com os comentários de Marx acima citados. Mas o que eles escondem é o facto de Lenine ter visto a NEP como um recuo tático nascido da necessidade. Foi um recuo provocado pelos reveses e derrotas que a revolução sofreu. Ao fazer concessões de mercado às camadas pequeno-burguesas, sobretudo ao campesinato, esperavam ganhar tempo e espaço para o jovem e isolado Estado operário.

Como tal, estava repleto de perigos. Quanto mais tempo durasse, maior seria o perigo para o Estado operário e para a economia planificada. Num discurso intitulado “Tarefas comunistas no segundo ano da Nova Política Económica“, Lenine cita o capitalista emigrado russo Ustryalov como tendo dito “Eu sou a favor de apoiar o poder soviético porque ele tomou o caminho [ou seja, a NEP] que o levará ao estado burguês comum“.

Ele acrescenta a seguinte advertência a essas observações,

“Temos de dizer francamente que as coisas de que Ustryalov fala são possíveis. A história conhece todo o tipo de metamorfoses. Confiar na firmeza das convicções, na lealdade e noutras qualidades morais esplêndidas é tudo menos uma atitude séria em política. Algumas pessoas podem ser dotadas de esplêndidas qualidades morais, mas as questões históricas são decididas por vastas massas, que, se algumas não lhes agradam, podem, por vezes, tratá-las de forma não muito educada… Os adeptos do Smena vekh [isto é, pessoas como Ustryalov] exprimem os sentimentos de milhares e dezenas de milhares de burgueses ou de funcionários soviéticos cuja função é operar a nossa Nova Política Económica. Este é o perigo real e principal… a luta contra a sociedade capitalista tornou-se cem vezes mais feroz e perigosa, porque nem sempre somos capazes de distinguir os inimigos dos amigos”.

O contraste de atitudes é, de facto, muito acentuado. Para Martinez e Ross, bastam as garantias da burocracia chinesa de que têm em mente os melhores interesses do povo chinês. Para Lenine, confiar em “esplêndidas qualidades morais é tudo menos uma atitude séria em política“.

Como é que Lenine pensava que o Estado operário poderia defender-se do perigo muito real da restauração capitalista colocada pela NEP? Martinez procura tranquilizar-nos citando Lenine sobre a NEP em 1921: “Não devemos ter medo do crescimento da pequena burguesia e do pequeno capital. O que devemos temer é a fome prolongada” (p. 21). Mas, como vimos, isto é desonesto. Lenine estava muito preocupado com os perigos, sublinhando que a NEP significava que os bolcheviques “nem sempre eram capazes de distinguir os inimigos dos amigos“, ou seja, que a restauração capitalista podia chegar através da infiltração e corrupção do partido bolchevique graças à NEP.

Em 1922, Lenine foi muito explícito sobre a forma como as tendências capitalistas na Rússia estavam a corromper o Estado operário ao ponto de este estar fora de controlo:

“O Estado está nas nossas mãos; mas será que, neste último ano, ele fez funcionar a Nova Política Económica como nós queríamos? Não… A máquina recusou-se a obedecer à mão que a guiava. Era como um carro que não ia na direção que o condutor desejava, mas na direção que alguém desejava; como se fosse conduzido por uma mão misteriosa e sem lei, sabe Deus de quem, talvez de um especulador, ou de um capitalista privado, ou de ambos. Seja como for, o carro não vai exatamente na direção que o homem ao volante imagina, e muitas vezes vai numa direção completamente diferente…

“Se considerarmos Moscovo, com os seus 4700 comunistas em posições de responsabilidade, e se considerarmos essa enorme máquina burocrática, esse amontoado gigantesco, temos de perguntar: quem dirige quem? Duvido muito que se possa dizer com verdade que os comunistas estão a dirigir esse amontoado…. Será que os 4700 comunistas (quase toda uma divisão do exército, e todos eles os melhores) estão sob a influência de uma cultura estranha?” (Discurso no 11º Congresso do Partido Bolchevique, 1922)

Esta é a verdadeira posição de Lenine. Nunca é demais sublinhar que estes receios surgiram numa situação de verdadeira democracia operária, que era o único antídoto contra os perigos da corrupção capitalista. Como Lenine disse no mesmo discurso, “o nosso é um Estado proletário; assenta no proletariado; dá ao proletariado todos os privilégios políticos” .

Isto é, Lenine podia ver claramente o perigo representado pelos “funcionários soviéticos cuja função é operar a nossa Nova Política Económica“, que ele disse ser “o perigo real e principal“. Isto porque tais burocratas são fundamentalmente carreiristas interessados nos seus próprios privilégios e prestígio; eles não são revolucionários proletários dedicados, eleitos pela sua classe e responsáveis perante ela. Uma tal burocracia é inerentemente propensa à corrupção. Se forem responsáveis pela administração de concessões ao mercado no âmbito de uma economia planificada, procurarão inevitavelmente utilizar a sua posição para ganhar uma parte dos lucros gerados e, por conseguinte, têm interesse na extensão destas medidas de mercado.

É por isso que Lenin enfatizou o carácter proletário do Estado e os “privilégios políticos” dados não aos burocratas, mas à classe trabalhadora. Só o controlo democrático de uma classe trabalhadora ativa e com consciência de classe poderia resistir à influência corruptora do “pequeno capital” e da “pequena burguesia” sob o retiro forçado que foi a NEP.

Mais do que isso, Lenine insistiu que este Estado proletário só poderia manter o controlo da situação se mantivesse um firme monopólio sobre o comércio externo, para impedir que a classe de capitalistas locais da NEP se ligasse ao imperialismo. Mas sob Deng, a partir de 1980, este monopólio estatal foi flexibilizado, primeiro nas Zonas Económicas Especiais, que eram o centro do crescimento económico, e depois, cada vez mais, em toda a China, após a sua aceitação como membro da OMC em 2001.

Martinez admite que “a China moderna foi muito mais longe do que a NEP, no sentido em que a propriedade privada não se limita à ‘pequena burguesia e ao pequeno capital’; existem alguns indivíduos e empresas extremamente ricos que controlam vastas somas de capital” (p21). Podemos acrescentar que esta situação, longe de ser um recuo temporário, se tornou a norma ao longo de várias décadas. E, o que é crucial, tudo isto tem sido administrado por uma burocracia altamente privilegiada, sem qualquer controlo democrático por parte da classe trabalhadora.

Se Lenine estava preocupado com os burocratas no seu seio após um ano de NEP, o que pensaria ele da vasta burocracia da China após décadas a administrar não pequenas, mas “vastas somas de capital”? Teria ele confiança em que estes eram amigos e não inimigos, e que a China estava seguramente no caminho para o comunismo?

As empresas estatais

O argumento de ambos os livros depende inteiramente da noção de que os cerca de 40% da economia chinesa que permanecem nas mãos do Estado podem orientar a economia para o socialismo. Aos seus olhos, o grande sector privado é um mal necessário para o desenvolvimento da economia, mas esse mal será conduzido com segurança para lançar as bases do socialismo graças ao sector estatal.

Não é fácil para o sector público dominar o enorme sector privado, dominar esta besta selvagem com a sua sede cega e insaciável de lucros, independentemente das consequências sociais. Os problemas que se colocam não são, certamente, para ser encarados de ânimo leve. As questões teóricas que se colocam são grandes e a sua resposta deveria ocupar uma grande parte dos dois livros.

Mas não é esse o caso. Martinez limita-se a citar Xi Jinping, que nos garante que o “pilar” da “economia socialista de mercado” chinesa é o “sector estatal”, que “não deve mudar” (Martinez, p. xi). Mas, como dizia Lenine, “confiar na firmeza das convicções, na lealdade e noutras esplêndidas qualidades morais é tudo menos uma atitude séria em política“.

Martinez diz-nos que o Estado chinês “mantém um controlo apertado sobre os ‘pontos de comando’ da economia”, como os bancos, sendo que os principais são propriedade do Estado e, por isso, “respondem principalmente perante o governo e não perante os acionistas privados“. Por outras palavras, há acionistas privados nos bancos estatais. Tudo isto, conclui ele, “significa que o capital não é capaz de assumir o controlo do curso económico global e que a economia é dirigida de forma a beneficiar o povo como um todo“.

Mas o que é que significa “beneficiar o povo no seu todo“? Quem decide o que é benéfico para “o povo”? O que conta exatamente como “o povo” (todos os chineses, igualmente, independentemente da sua classe?), e como é que o Estado pode “dirigir” o sector privado desta forma? Martinez explica:

A caraterística fundamental que define a sociedade socialista não é a proporção relativa de propriedade pública e privada, mas a consolidação do poder político na classe trabalhadora e nos seus aliados. Um Estado socialista pode claramente incorporar mecanismos de mercado, desde que estes funcionem sob a orientação do Estado e introduzam algum benefício para os trabalhadores; desde que não se permita que o capital se torne politicamente dominante. Como Deng insistiu: ‘Se os mercados servem o socialismo, são socialistas; se servem o capitalismo, são capitalistas’“.

Mas, ainda assim, não sabemos o que é que conta como “ao serviço do socialismo”, produzindo “algum benefício para os trabalhadores”, e o que é que não conta. Certamente que Martinez admitiria que os mercados têm uma tendência inerente para “servir o capitalismo” em vez do socialismo? Não haverá perigos nesta tendência? Não haverá perigos de corrupção, de o Estado dizer que está a “servir o povo” quando na realidade está apenas a encher os seus próprios bolsos?

Martinez prossegue:

As principais prioridades do governo chinês na era atual são muito consistentes com as exigências do povo chinês [como é que ele sabe quais são as suas exigências?], em particular: proteger a unidade e a integridade territorial da China; melhorar o nível de vida; acabar com a corrupção; proteger o ambiente; erradicar a pobreza; manter a paz e a estabilidade; proteger a saúde e o bem-estar das pessoas; e restabelecer o prestígio nacional da China” (p. xvi)

A inclusão da “proteção da unidade e da integridade territorial” e do “restabelecimento do prestígio nacional da China” soa suspeitosamente como as prioridades de uma classe dirigente e não do “povo”. É claro que um governo pode alegar ter “prioridades máximas” que soam agradáveis, mas se erradicaram efetivamente a pobreza, a corrupção e a degradação ambiental é uma questão completamente diferente. E a classe dirigente de qualquer país capitalista bem-sucedido não teria todo o gosto em enumerar um conjunto muito semelhante de “prioridades”? Os capitalistas japoneses, sul-coreanos e taiwaneses não afirmariam ter “melhorado o nível de vida”, “erradicado a pobreza”, “reprimido a corrupção”, etc., etc.?

Devemos apenas acreditar na palavra de Xi Jinping de que ele representa a “consolidação do poder político na classe trabalhadora“, que tem em mente os seus melhores interesses e que é capaz de se manter livre da influência corruptora das enormes quantidades de capital e desigualdade na China?

Este é o resumo da análise de Martinez e Ross sobre os problemas e perigos da utilização a longo prazo dos mecanismos de mercado – está tudo bem, porque o sector estatal continua a ser (bastante) grande e o Estado tem as mesmas prioridades que “o povo”.

Ora, se as empresas públicas fossem dominantes e orientassem a economia para o socialismo e o comunismo, as empresas públicas reforçar-se-iam naturalmente com o tempo, de tal modo que a economia se tornaria gradualmente mais planificada, mais harmoniosa e a sociedade mais igualitária. É isto que encontramos?

Curiosamente, o próprio Martinez cita Martin Jacques com aprovação, quando se gaba de que “o Governo chinês procurou tornar as numerosas empresas públicas que subsistem tão eficientes e competitivas quanto possível. Como resultado, as 150 maiores empresas estatais, longe de serem patos coxos, tornaram-se, pelo contrário, enormemente lucrativas, tendo os seus lucros agregados atingido 150 mil milhões de dólares em 2007“.

Estes enormes lucros são extremamente significativos. Mas Martinez insiste que o Estado orienta estas empresas para investirem em fins menos lucrativos, mas socialmente mais úteis, como os caminhos-de-ferro para províncias remotas, e é isso que prova que estão a lançar as bases do socialismo. E, no entanto, também quer vangloriar-se de que são “enormemente rentáveis” e que a fonte do sucesso económico da China reside precisamente no aproveitamento dessa rentabilidade.

Embora seja verdade que, sob Xi, tenha havido um certo reforço do sector estatal, ao mesmo tempo, estas empresas têm estado sob maior pressão para obter lucros e, assim

operar de acordo com a lógica do mercado:

Nos últimos três anos, Pequim introduziu objetivos financeiros para as empresas públicas, incluindo a rendibilidade dos capitais próprios ou o crescimento dos lucros líquidos. Mas este ano, o governo deu um passo adicional importante, dizendo aos gestores das empresas públicas que iria começar a avaliá-los com base no desempenho do mercado bolsista. “Em comparação com as anteriores rondas de reformas, esta reforma terá um maior impacto porque associa diretamente os indicadores do mercado financeiro à [avaliação do desempenho] dos quadros superiores das empresas públicas”, afirmou Robin Huang, professor de direito na Universidade Chinesa de Hong Kong. (Financial Times, 17 de abril de 2024)

Assim, embora as gigantescas empresas estatais ocupem uma posição importante na economia, não são os resultados que alcançam do ponto de vista de um qualquer plano económico que são considerados significativos para a burocracia do PCC, mas sim o seu desempenho no mercado. Em outras palavras, o mercado dita para o estado, e não vice-versa.

É verdade que, após uma revolução, nem tudo seria nacionalizado. Não seria tecnicamente viável planificar toda a economia, pelo que, de uma forma ou de outra, o sector privado seria autorizado a operar e a obter lucros, para que estes pudessem ser tributados e reintroduzidos no sector planificado da economia. Desta forma, o sector planificado seria construído até ao ponto em que as necessidades da sociedade pudessem ser totalmente satisfeitas pelo plano público, e a motivação do lucro desapareceria. Daqui não decorre, de forma alguma, que o sector estatal da economia deva também funcionar segundo a lógica do lucro!

Quais são as consequências reais de se conceder às empresas públicas uma certa autonomia para a realização de lucros, como aconteceu nos anos 80 e 90? A explosão do endividamento, da especulação, da corrupção e da desigualdade obscena, não só no sector privado, mas também no sector estatal. O Estado chinês, embora mantenha muito mais influência sobre a economia do que a maioria dos Estados ocidentais, perdeu, de facto, o controlo da economia e das suas próprias empresas públicas.

Por exemplo, em 2011, o porta-voz do PCC, China Daily, informou que

A China colocou limites nos salários em 2009 – 2,8 milhões de yuans [cerca de US$ 440.000] para executivos de empresas estatais – mas a política parece ter sido ignorada… O Diretor Executivo mais bem pago de uma empresa pública é Han Junliang, que recebeu 8,58 milhões de yuanes da Sinovel Wind Group Ltd este ano… “Os pagamentos dos Directores Executivos não dependem apenas do seu desempenho. Também é decidido pelo mercado”, diz Jennifer Feng… Desde 2005, o governo permite que os executivos das empresas públicas detenham e vendam uma pequena percentagem das ações das suas empresas“.

O facto de o Estado ter perdido o controlo da economia também se reflete no facto de a China estar de novo sujeita às leis da crise capitalista. Ross e Martinez elogiam a China por ter evitado a crise de 2008, o que consideram uma prova da sua economia planificada e não capitalista. Mas são muito parcos a explicar como é que a China evitou uma recessão nessa altura.

Em 2009, no auge da crise, o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao declarou o seguinte: “A crise atual teve um impacto bastante grande impacto na economia da China. Estamos a enfrentar graves desafios, incluindo uma diminuição notável da procura externa, excesso de capacidade em alguns sectores condições de atividade difíceis para as empresas, o aumento do desemprego nas zonas urbanas e uma maior pressão descendente sobre o crescimento económico… dependemos principalmente da expansão da procura interna efetiva, em especial da procura dos consumidores, para impulsionar o crescimento económico. Efetuámos atempadamente ajustamento atempado da orientação da nossa política macroeconómica, adotámos rapidamente uma política fiscal pró-ativa e uma política monetária moderadamente fácil“.

Por outras palavras, a China sofreu os mesmos os mesmos sintomas clássicos de uma crise provocada pela anarquia do mercado anarquia do mercado capitalista: a sobreprodução, embora a burocracia chinesa use o mesmo eufemismo que os economistas burgueses ocidentais, falando de “sobrecapacidade”. Num plano de produção socialista não se ouviria falar de sobreprodução. Os produtos úteis seriam produzidos e distribuídos de acordo com um plano de satisfação das necessidades. Mas no capitalismo, a produção é efetuada para um mercado de dimensão desconhecido e com fins lucrativos. Periodicamente, à medida que cada capitalista tenta agarrar para si a maior parte possível desse mercado, o sistema gera crises de sobreprodução – não porque não haja necessidade dessas mercadorias, mas porque o mercado não as pode absorver. O resultado é a crise, as falências, o desemprego e todos os outros vícios do capitalismo.

Os métodos keynesianos podem ser usados para atenuar temporariamente essa crise, aumentando a procura perante uma crise capitalista clássica. A China usou o seu controlo estatal do sistema bancário para emitir quantidades sem precedentes de dívida para financiar infraestruturas e outros projetos, na esperança de evitar uma crise. Mas estes métodos keynesianos têm os seus limites.

A curto prazo, funcionaram mais ou menos, como é frequentemente o caso das medidas de estímulo numa numa economia capitalista. Mas a escala do estímulo – um dos maiores da história – foi tão grande que teve repercussões incalculáveis na economia chinesa, cujos efeitos ainda não se fazem sentir na sua totalidade. Pelo facto da China não ser uma economia planificada, e mesmo os bancos estatais e outras empresas procurarem obter e reter lucros, o estímulo teve todo o tipo de consequências indesejadas.

Em primeiro lugar, provocou um aumento da dívida do Estado, das empresas e, sobretudo, da dívida pública local. Isto está a preparar o caminho para crises ainda mais profundas no futuro, como explicaremos de seguida. Nomeadamente, assistiu-se também à explosão do “shadow banking”, ou seja, da banca ilegal ou semilegal e não regulamentada. Wen Jiabao pode ter esperado que a explosão de empréstimos resultantes do estímulo fosse canalizada exatamente para o tipo de projetos socialmente úteis mas menos rentáveis (fins para os quais a propriedade estatal é utilizada na China, segundo Martinez). Mas, precisamente por serem menos rentáveis, não foi esse o caso. De acordo com o Financial Times, em 2011:

A atividade mais lucrativa dos bancos estatais no primeiro semestre deste ano não foi a concessão de empréstimos a empresas, mas o financiamento de fundos fiduciários e bancos clandestinos, mostram relatórios financeiros bancários. Ainda assim, é compreensível que os bancos desejem maximizar os lucros, especialmente numa altura em que os depósitos estão a esgotar-se. Nos primeiros 15 dias de setembro, por exemplo, os ‘quatro grandes’ bancos estatais sofreram uma perda líquida em depósitos de 420 mil milhões de RMB – mais de quatro vezes os seus empréstimos no mesmo período – enquanto os aforradores fugiram para bancos paralelos de alto rendimento.

Por outras palavras, a pressão do mercado forçou a mão destes bancos estatais, e os efeitos socialmente benéficos desejados do estímulo não foram alcançados. Os bancos (estatais e privados) atuaram de forma capitalista. Tal como noutros países, o estímulo levou a uma explosão de atividade especulativa míope. De acordo com outro artigo do Financial Times de 2011:

“O “shadow banking” permite que as empresas – algumas estimativas dizem que 90% dos “shadow lenders” são estatais – obtenham rendimentos mais saudáveis do que se deixassem o dinheiro em depósito [ou seja, nos bancos oficiais]… A PetroChina [detida pelo Estado] tem um braço de gestão de ativos, um banco fiduciário, um banco comercial, bem como uma unidade financeira interna. O Grupo Baosteel, detido pelo Estado, detém uma participação de 98% na Fortune Trust, uma das maiores empresas de trust, enquanto o Grupo Hunan Valin Iron and Steel detém uma participação de 49% na Huachen Trust“.

É muito claro que o Estado não “domina” a economia, embora desempenhe um papel mais influente do que nas economias dos seus concorrentes ocidentais. Mas a questão aqui é que, mesmo que os bancos sejam “principalmente responsáveis perante o governo e não perante acionistas privados“, tanto os bancos como o governo são impotentes perante os ditames da necessidade do mercado. Os mercados não “servem o socialismo”.

Na verdade, não há nada de particularmente invulgar na escala do sector estatal chinês, especialmente se considerarmos o facto de este obter os seus próprios lucros e competir no mercado. A maior parte dos países que tiveram sucesso no desenvolvimento do capitalismo a partir do século XX tiveram de o fazer com uma forte intervenção, orientação e proteção do Estado. Isto deve-se ao facto de a classe capitalista desses países ser demasiado fraca para competir com os capitalistas mais estabelecidos de países como a Grã-Bretanha, a França e os EUA, e demasiado fraca para levar a cabo uma revolução contra a classe dominante feudal ou pré-capitalista do seu país.

No Japão, “o governo desempenhou um importante papel de orientação na economia, desenvolvendo e mantendo relações com o mundo dos negócios e oferecendo assistência nas áreas que favorecia e às empresas que favorecia… o governo estava relutante em deixar o desenvolvimento económico às forças do mercado. Continua a sê-lo“. (Kenneth Henshall, ‘A History of Japan, from Stone Age to Superpower‘ (1999).

Em Itália, Mussolini criou o Instituto para a Reconstrução Industrial, o que significava que o Estado desenvolvia diretamente as empresas industriais. Pietro Grifone escreveu em 1940 que “no seu conjunto, a banca e as grandes indústrias, especialmente a indústria do armamento, dado o seu importante interesse público, são colocadas sob o controlo direto do Estado“. Em 1936, “80% das importações e 60% das exportações estão sob o controlo de organizações monopolistas do Estado” (Emilio Sereni). Ainda no início dos anos 90, em Itália, o Estado controlava 70% do sistema bancário e grandes sectores da economia.

Como já referimos, o Conselho para o Planeamento e Desenvolvimento Económico de Taiwan refere que “o sector privado ultrapassou o sector público nas despesas de I&D pela primeira vez em 1993″.

Até agora, o sector estatal representava um terço do PIB e um quarto do emprego total, mais do que na China “comunista”, segundo algumas estatísticas… Em 1952, a produção industrial das empresas públicas em Taiwan representava 57% do total“.

Na Coreia do Sul, durante a ditadura de Park Chung Hee, o Estado nacionalizou a banca até ao ponto de controlar 96,4% dos ativos financeiros do país! Em seguida, instituiu uma série de “Planos Quinquenais”, geridos por um Conselho de Planeamento Económico, em que o Estado deu instruções aos bancos para emprestarem a conglomerados industriais (chaebols) que desenvolvessem a indústria pesada, incluindo a construção naval, o aço e os produtos químicos.

De uma economia rural baseada na exportação de produtos de baixa tecnologia fabricados com mão de obra barata, a Coreia do Sul desenvolveu uma base industrial considerável, com um grande número de pessoas a migrar do campo para as cidades, e tornou-se um exportador de produtos de alta tecnologia. O processo é muito semelhante ao que a China tem vivido. Foi descrito como “capitalismo guiado”, mas ninguém pensou em chamar-lhe “socialismo”.

No caso do Japão, de Taiwan e da Coreia do Sul, o medo do comunismo levou o Estado a obrigar os capitalistas a investir fortemente, por vezes contra os seus próprios interesses individuais. Também por esta razão, os três países beneficiaram da ajuda dos Estados Unidos e de condições comerciais preferenciais. No entanto, não deixa de ser verdade que, em locais onde o capitalismo se desenvolveu muito mais tarde e com uma classe capitalista mais fraca do que na Europa Ocidental, foi necessária uma forte intervenção estatal para proteger e alimentar este processo.

É claro que o caso chinês tem diferenças importantes em relação a estes exemplos, nomeadamente o facto de o partido que liderou a revolução em 1949 continuar no poder e de a classe dirigente chinesa estar envolvida numa luta pelo poder com o imperialismo americano. Estes fatores tornam muito menos provável que a China venha a “liberalizar” totalmente a sua economia, e muito menos a sua política, num futuro próximo.

O que eles mostram é que aquilo que à primeira vista pode parecer um fenómeno excecional é, de facto, muito normal. Se olharmos para além dos rótulos, da retórica e da propaganda, encontramos no crescimento económico vertiginoso da China, no facto de ter tirado milhões de pessoas da pobreza e na sua dependência da intervenção do Estado, apenas as características típicas de um país que desenvolveu o capitalismo com sucesso, mas tardiamente.

Basta ouvir a liderança do PCC para ver isso. Ross e Martinez gostam de mostrar certas citações de Deng Xiaoping e Xi Jinping que professam sua visão marxista para a China. No entanto, se examinarmos realmente essas citações, notaremos que estão sempre relacionadas com o desenvolvimento a longo prazo da China, com os seus objetivos mais distantes. Estas citações caracterizam-se sempre pela sua abstração. Para ser franco, são lugares-comuns.

Há muitas outras citações que Ross e Martinez optam por não destacar. Por exemplo, no Congresso Nacional do Povo de 2020, em Pequim, Xi disse que “chegámos ao entendimento de que não devemos ignorar a cegueira do mercado, nem devemos regressar ao velho caminho de uma economia planeada“. Segundo a Xinhua, Xi afirmou que “a China está empenhada em garantir que o mercado desempenhe um papel decisivo na afetação dos recursos“.

O The Economist relata que, em 6 de setembro de 2021, “Liu He, vice-primeiro-ministro, tentou tranquilizar os empresários privados, dizendo que os seus esforços eram fundamentais para a economia do país“. Preocupado em acalmar os receios dos capitalistas chineses de que o Governo não tem em conta os seus interesses, o Departamento de Propaganda do Comité Central convocou uma conferência de imprensa. Todo o propósito dessa conferência era deixar claro que o PCC não tem intenção de “matar os ricos e dar aos pobres.”

O que nós temos na China é um regime Bonapartista burguês, isto é, um modo de produção capitalista no qual o estado, por razões históricas, é capaz de desempenhar um papel muito mais independente e poderoso do que em países como a Inglaterra e a América. Apesar deste facto, este regime assenta numa economia capitalista, defende relações de propriedade capitalistas e é, portanto, obrigado a aceitar as leis do capitalismo.

Para onde vai a China?

Os nossos autores são otimistas em relação à China. Estão convencidos de que a economia chinesa continuará a crescer, habilmente guiada pela intervenção do Estado, até que esse crescimento a conduza ao socialismo. Para eles, o crescimento da China é isento de contradições. Vai continuar a tirar as pessoas da pobreza, sem interrupções reais. Ross diz-nos, uma e outra vez, que “o aumento do PIB tem consequências sociais e pessoais dramáticas – ou seja, o aumento do PIB per capita não é socialmente ‘neutro’, mas é altamente socialmente positivo”. (Ross, p28).

Não há um pingo de dialética nisto. O argumento é simplesmente: “A China cresceu, e por isso vai continuar a crescer. O crescimento significa que os trabalhadores têm mais dinheiro e, por isso, o crescimento é socialista”. Sim, o nível de vida aumentou, mas também aumentou na Europa Ocidental, na América do Norte e noutras economias da Ásia Oriental. Mas a classe trabalhadora desses países continua a ser explorada, tal como acontece na China. O marxismo entende a sociedade em termos de relações sociais e não de riqueza absoluta.

O crescimento da China baseia-se em contradições de classe e, por isso, não pode durar. Segundo a revista The Economist, em 2021, a China tinha 698 bilionários, quase tantos como os EUA (724). De acordo com o Hindustan Times, os vinte “legisladores” mais ricos da China valem 534 mil milhões de dólares.

A desigualdade na China cresceu tão rapidamente que passou de um dos países mais iguais do mundo para um dos mais desiguais, com um Coeficiente de Gini (uma medida da desigualdade económica) ligeiramente superior ao dos EUA e da Grã-Bretanha. As grandes cidades chinesas estão entre os lugares mais inacessíveis do mundo.

Agora, as galinhas estão a voltar para o galinheiro. O boom económico da China terminou. De repente, o Estado parece já não ter grande controlo sobre a economia e anda a ziguezaguear de uma política para outra, na esperança de aumentar a confiança económica. A crise que se abateu sobre a economia foi provocada por uma tentativa desastrada do Estado de lidar com o excesso de endividamento e a especulação imobiliária.

Ross e Martinez argumentam que o Estado é capaz, através do seu controlo dos bancos e de outras empresas, de orientar o investimento para projetos socialmente benéficos, em vez de o fazer para a especulação gananciosa. Os principais exemplos disto são os colossais booms nas infraestruturas e na construção. Mas como a economia, incluindo as empresas públicas e os bancos, é gerida em função do lucro, estes projetos têm sido especulativos. Foram financiados por dívida. E a dívida tem de ser paga com juros.

Estes juros representam um direito sobre os lucros gerados pelo investimento endividado. Mas, numa economia capitalista, nem sempre é possível obter lucros. Chega-se a um ponto em que se percebe que um grande volume de empréstimos não é sólido, que a dívida não pode ser paga porque, de um modo geral, não se registaram lucros. Foi exatamente o que aconteceu com o boom imobiliário e o boom das infraestruturas, que se transformaram em colapsos.

No dia 13 de março de 2024, o Financial Times referia que:

Pequim ordenou a uma dúzia de regiões altamente endividadas, muitas delas menos desenvolvidas e afastadas da costa, que reduzissem as despesas com infraestruturas, à medida que tentam desfazer uma farra de investimento de uma década que muitos consideram insustentável… A província de Guizhou deixou de lado tantos projetos de infraestruturas que se prevê que as despesas provinciais para grandes projetos este ano caiam 60%… “É melhor que os governos de todos os níveis se habituem a apertar o cinto e comecem a compreender que não se trata de uma necessidade temporária, mas de uma solução a longo prazo”, disse o ministro das Finanças, Lan Fo’an, numa conferência de imprensa… “Todos nós, chineses, precisamos de apertar o cinto, e não apenas os governos locais”, disse Zhang Shuyang, um delegado do CNP [Congresso Nacional do Povo] de Guizhou. “Viver com frugalidade é a nossa gloriosa tradição como nação chinesa”… A Yuekai Securities estima que a onda de construção de infraestruturas da província [Guizhou] a deixou com uma dívida total, incluindo responsabilidades extrapatrimoniais, de 137% do seu produto interno bruto”.

Por outras palavras, a China está no início de uma crise capitalista clássica, desencadeada pela especulação e pelo endividamento excessivos, mas causada, em última análise, pela anarquia e pelas contradições da produção capitalista. E a resposta a esta crise é praticamente a mesma que foi dada no Ocidente após 2008: austeridade. O controlo económico supremo do Estado e o planeamento para as necessidades sociais não são visíveis em lado nenhum.

Se o Partido Comunista Chinês fosse um verdadeiro partido comunista e se a “economia socialista de mercado” fosse de facto um meio para lançar as bases do socialismo, a crise capitalista que está agora claramente a envolver a China marcaria o culminar desse processo? A economia chinesa é atualmente a segunda maior do mundo. Tem a maior classe trabalhadora do mundo, que é também altamente instruída. A maioria da população vive atualmente em cidades. Dispõe de infraestruturas de nível mundial. Tem uma capacidade industrial vasta e altamente avançada. Em muitos domínios, a sua tecnologia é líder mundial.

A “experiência” de décadas de reformas de mercado conduziu a uma monopolização significativa. Em vez de serem compostas por milhões de pequenas empresas privadas com pouco capital, muitas indústrias chinesas estão “maduras”, ou seja, grandes monopólios privados como a Huawei, a ByteDance, a Ali Baba, a BYD e a CATL dominam o mercado mundial e empregam milhares e milhares de trabalhadores.

Atualmente, o mercado em que estas empresas operam entrou em crise. Não se pode imaginar uma situação mais propícia à expropriação do capital em grande escala para a construção do socialismo. Em vez disso, o Estado está a começar a aplicar medidas de austeridade.

As greves já são muito comuns na China, apesar dos esforços do partido “comunista” chinês para as eliminar. À medida que a crise se for desenrolando na China, a classe trabalhadora será levada a agir mais. Esta ação assumirá cada vez mais um carácter generalizado e político. Durante as últimas décadas, o PCC tem apostado a sua reputação e legitimidade na sua capacidade de proporcionar aumentos constantes do nível de vida. Ross e Martinez também baseiam os seus argumentos neste facto. O fim deste boom de décadas representa, portanto, uma crise política para o regime de Pequim. E o rebentamento da bolha significa também o rebentamento da claque estalinista a favor do capitalismo chinês.

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